POESIA, MÚSCULOS E OSSOS
Para Aristóteles: “poesia é a arte da imitação da realidade”. Segundo o filósofo, todo poeta imita, cria e fantasia a realidade baseado em seus afetos e também nos objetos do seu cotidiano.
O poeta português Fernando Pessoa se apropria dessa ideia e joga ainda mais lenha nesta fogueira quando afirma: “todo poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é/dor/a dor que deveras sente”.
No caso da poética de Ferreira Gullar, conseguimos enxergar um grande emaranhado de interseções entre “realidade e fantasia”, que se confrontam na obra do poeta.
Em seus poemas, a “fantasia” funde-se completamente na complexidade do seu cotidiano, extraída dos espantos de sua vida caseira - portanto de sua “realidade”: o olor das bananas apodrecidas, a luz produzida pelo sol de São Luiz do Maranhão, a dureza da vida dos homens que produzem riquezas e pouco ganham. Todos estes elementos são matéria de poesia para o poeta.
Em sua obra, Gullar busca desenfreadamente aquilo que é essência da vida no seu entorno - aquilo que é mais duro e elementar - para transformar aspectos cotidianos em poesia, é o que acontece nestes três poemas que escolhi para exemplificação da “verdade” de Aristóteles.
Para Gullar, ossos e músculos são matéria para poesia como também deve ser para a vida de todos nós. Vamos à leitura para conhecer nosso corpo, aquilo que realmente somos, será?
*EXERCÍCIO DE RELAX
Pé direito, meu velho, relaxa,
esquece a inflação,
quero contigo iniciar
esta lenta descida do sono...
Mergulha nele, perna
minha, até o joelho...assim...
e agora,
pé esquerdo,
você também, que nunca fez um gol na vida,
que só topadas deu,
adormece,
afrouxa esse feixe de tendões e ossos e te abre
à paz.
Joelhos meus, pensem
nos oitizeiros
da Avenida Silva Maia
e durmam,
e que as águas do sono subam pelos músculos da coxa
aductor longus, quadríceps femoris
e pelo fêmur
e pelo ânus
e pelo pênis
e me cinjam a cintura.
Deitado, já metade de mim desceu na sombra. A outra
metade
sofre ainda a crise do petróleo.
Relaxa abdômen, que está tudo sob controle, músculos
do peito e dos braços,
abandonem-se,
para que a paz escorra até a palma da mão:
a esquerda anônima, a direita
tão conhecida de mim quanto meu rosto
e que, como ele, mais disfarça
o que eu somos
o que eu sonos
mas que, dentre as hostes celestes, me reconheceria
pelo caralho?
Cala-te, boca,
silencia, maxilar arcaico,
apaga-te, arco-voltaico
do que o verso não diz.
E agora, tu, cabeça,
dura cabeça nordestina,
dorme,
dorme, revolta,
sociedade futura pátria igual,
poema que iluminaria a cidade,
dorme
onde me sonho
(caixa de flores)
E donde espio o mundo
por duas órbitas
e duas pálpebras
que finalmente
se fecham
sobre mim.
*Poema extraído do livro: “Barulhos”, pág. 10
*RELEXÕES SOBRE O OSSO DA MINHA PERNA
A parte mais durável de mim
são os ossos
e a mais dura também
como, por exemplo, este osso
da perna
que apalpo
sob a macia cobertura
ativa de carne e pele
que o veste e inteiro
me reveste
dos pés à cabeça
esta vestimenta
fugaz e viva
sim, este osso
a mais dura parte de mim
dura mais do que tudo o que ouço
e penso
mais do que tudo o que invento
e minto
este osso
dito perônio
é, sim,
a parte mais mineral
e obscura
de mim
já que à pele
e à carne
irrigam-nas o sonho e a loucura
têm, creio eu,
algo de transparente
e dócil
tendem a solver-se
e esvanecer-se
para deixar no pó da terra
o osso
o fóssil
futura
peça de museu
o osso
este osso
(a parte de mim
mais dura
e a que mais dura)
é a que menos sou eu?
*Poema extraído do livro: “Em alguma parte Alguma”, pág. 31
*HOMEM SENTADO
Neste divã recostado
à tarde
num canto do sistema solar
em Buenos Aires
(os intestinos dobrados
dentro da barriga, as pernas
sob o corpo)
vejo pelo janelão da sala
parte da cidade:
estou aqui
apoiado apenas em mim mesmo
neste meu corpo magro, mistura
de nervos e ossos
vivendo
à temperatura de 39 graus e meio
lembrando plantas verdes
que já morreram.
*Poema extraído do livro: “Na vertigem do dia”, pág. 64