POEMA E POESIA, O QUE SÃO?
Este é um pequeno ensaio que pretende mostrar ao leitor e também para aqueles que se dedicam a escrever, o que é uma coisa e outra. O poema é o produto do gênero poesia, portanto, resultado do fazer literário no gênero. O poeta escreve poema, mas seu gênero literário é a poesia.
Para tanto me apropriei de cinco poemas do poeta Ferreira Gullar. Nos quatro primeiros o poeta nos fala sobre o que é o poema e principalmente a relação entre poeta e poema.
O último poema: TANGA, o poeta escancara, na minha visão, o que é poesia. Leiam e divirtam-se nos versos de Ferreira Gullar:
INSETO*
Um inseto é mais complexo do que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica
Também mais complexo
Que uma hidrelétrica
é um poema
(menos complexo que um inseto)
e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar a avenida
ou quem sabe
uma vida.
Fonte: Em alguma parte alguma, pag. 49 – 4ª Edição, Ed. José Olímpio.
POEMA POROSO*
De terra te quero;
poema,
e no entanto iluminado.
De terra
o corpo perpassado de eclipses,
poroso
poema
de poeira –
onde berram
suicidas e perfumes;
assim te quero
sem rosto
e no entanto familiar
como o chão do quintal
(sombra de todos nós depois
E antes de nós
quando a galinha carcareja e cisca).
De terra,
onde para sempre se apagará
a forma desta mão
por ora ardente.
Fonte: Barulhos, pág. 15 – 2ª Edição, Ed. José Olímpio.
O LAMPEJO*
O poema não voa de asa-delta
não mora na Barra
não frequenta o Maksoud.
Pra falar a verdade, o poema não voa:
anda a pé
e acaba de ser expulso da fazenda Itupu
pela polícia.
Come mal dorme mal cheira a suor,
parece demais com o povo:
é assaltante?
é posseiro?
é vagabundo?
Frequentemente o detêm para averiguações
às vezes o espancam
às vezes o matam
às vezes o resgatam
da merda
por um dia
e o fazem sorrir diante das câmeras da TV
de banho tomado.
O poema se vende
se corrompe
confia no governo
desconfia
de repente se zanga
e quebra trezentos ônibus nas ruas de Salvador.
O poema é confuso
mas tem o rosto da história brasileira:
tisnado de sol
cavado de aflições
e no fundo do olhar, no mais fundo,
detrás de todo o amargor,
guarda um lampejo –
um diamante
duro como um homem
e é isso que obriga o exército a se manter de prontidão.
Fonte: Barulhos, pág. 24, 2ª Edição, Ed. José Olímpio.
BARULHO*
Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.
Fonte: Barulhos, pág. 43, 2ª Edição, Ed. José Olímpio.
ISTO É UM POEMA:
TANGA*
Havia o que se via
e o que não se via:
a manhã luminosa
encobria a treva
abissal e velha dos espaços.
O mar batia
em frente à Farme de Amoedo e ali
na areia
a gente mal o ouvia se o ouvia.
E era então que ela súbito surgia
rindo entre os cabelos
a raquete na mão
e se movia
ah, como se movia!
E nessa translação nos descobria
suas fases solares:
o ombro
o dorso
a bunda
lunar?
Estelar?
a bunda
que (sob uma pétala
de azul)
celeste me sorria.
Fonte: Barulhos, pág. 9, 2ª Edição, Ed. José Olímpio.