PISANDO O QUINTO ANO SEM GULLAR:
“A poesia quer ser o inexplicável,
a expressão do que espanta e fascina,
sem ter explicação.”
Ferreira Gullar
Nasceu sob um sol de 40º. O ano era de 1930 – num setembro, banhado pelas águas do oceano, que banha a cidade de São Luiz de onde teceu sonhos que ultrapassaram as fronteiras da quitanda de Seu Newton Ferreira, seu pai.
Foi com o olhar de espanto sobre as coisas: frutas que apodreciam lentamente nas prateleiras, destilando o mel da vida e também com falas dos clientes da quitanda - conversas no balcão e o cheiro da cachaça, alimentando o fogo das fofocas do dia - todos esses elementos construíram a base de sua poética, engajada na luta política, que o levou aos quartos das pensões do Rio de Janeiro e ao exílio em vários países.
Gullar foi também jornalista, crítico de arte e precursor do movimento neoconcretista no Brasil. Em 2010 recebeu o “Prêmio Camões”, o mais importante da literatura de língua portuguesa. Em 2002 foi indicado para o “Prêmio Nobel de Literatura”, recebeu também o “Prêmio Jabuti” (2007 e 2011). No ano de 2014 entrou para a Academia Brasileira de Letras (ABL). É considerado um dos maiores escritores brasileiros do século XX.
Faleceu no dia 04 de dezembro de 2016, aos 86 anos no Rio de Janeiro, vítima de pneumonia, deixando uma vasta obra e muita controvérsia; questionador por natureza, motor de sua poética, Ferreira Gullar, segundo Miguel Conde: “morreu na contramão das convicções políticas e do pensamento estético de muitos de seus admiradores”. Viveu além de seu tempo, sempre em busca dos lampejos de seu cotidiano, semente de sua poética social.
Segue alguns poemas para nos lembramos do grande poeta:
MEU POVO, MEU POEMA
Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova
No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar
No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro
Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil
Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta.
NÃO HÁ VAGAS
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
- porque o poema, senhores
está fechado:
“não há vagas”.
O AÇÚCAR
O branco do açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco fez o Oliveira,
dono da mercearia.
este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital
nem escolas,
homens que não sabem ler e morrem
aos 27 anos
plantaram e colheram a cana
que viraria açúcar.
Em usinas escuras
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
ARTE POÉTICA
Não quero morrer não quero
apodrecer no poema
que o cadáver de minhas tardes
não venha feder em tua manhã feliz
e o lume
que tua boca acenda acaso das palavras
- ainda que nascido da morte –
some-se
aos outros fogos do dia
aos barulhos da casa e da avenida
no presente veloz
Nada que pareça
a pássaro empalhado múmia
de flor
dentro do livro
e o que da noite volte
volte em chamas
ou em chaga
vertiginosamente como o jasmim
que num lampejo só
ilumina a cidade inteira.
SUBVERSIVA
A poesia
quando chega
não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
relincha
como puta
nova
em frente ao Palácio da Alvorada.
E só depois
reconsidera: beija
nos olhos os que ganham mal
embala no colo
os que têm sede de felicidade
e de justiça
E promete incendiar o país.
UM SORRISO
Quando
com minhas mãos de labareda
te acendo e em rosa
embaixo
te espetalas
quando
com meu facho aceso e cego
penetro a noite de tua flor que exala
urina
e mel
que busco eu com toda essa assassina
fúria de macho?
que busco eu
em fogo
aqui embaixo?
senão colher com a repentina
mão do delírio
uma outra flor: a do sorriso
que no alto o teu rosto ilumina?
INSETO
Um inseto é mais complexo que um poema
Não tem autor
Move-o uma obscura energia
Um inseto é mais complexo que uma hidrelétrica
Também mais complexo
Que uma hidrelétrica
é um poema
(menos complexo que um inseto)
e pode às vezes
(o poema)
com sua energia
iluminar uma avenida
ou quem sabe
uma vida.