ONDE A PORCA TORCE O RABO
No começo do ano de 2010 enviei um poema meu para Affonso Romano de Sant'anna através de e-mail, ele respondeu e enviou um texto, o qual agora publico para vocês.
Affonso
25/01/2010 11:50
É isso aí, Frederico, não sei sua idade, nem o que faz, mas sem dúvida, você é do ramo. Algumas coisas que posso dizer em geral sobre o fazer poético estão em meus livros ou nessas crônicas que envio aos iniciantes(não é seu caso). Já que está condenado à poesia, tire o maior proveito dessa condenação, ars
On 1/23/10 5:33 PM, "frederico spencer" <frederico_spencer@hotmail.com> wrote:
Prezado Poeta, Gosto muito de poesia e como não podia deixar de ser, lanço-me na aventura dos versos. Com o passar do tempo noto que a minha poesia, como tudo na vida, se modifica e acho que agora encontro mais a maturidade nas palavras e os versos também se enxugam e falam mais coisas. E este poema acho que é o emblema de tudo isto que falo, desta forma peço, se possível, que desse alguma sugestão sobre o poema que agora lhe envio. No aguardo Frederico Spencer
Este é o texto que Affonso Romano de Sant'anna enviou, uma aula sobre o que é escrever poesia:
ONDE A PORCA
TORCE O RABO
Affonso Romano de Sant’Anna
Às vezes, leitores escrevem a mim e a outros escritores, perguntando se podem enviar (ou já enviando) seus textos. Em geral, repetem algumas coisas, que retratam o desconforto dessa situação. Primeiro, que carecem da opinião de alguém mais experimentado, que lhes oriente e, em muitos casos, querem saber se devem ou não continuar a escrever.
Nem sempre são jovens, mas pessoas maduras em quem, de repente, a literatura (ou a liberdade de expressão?) aflorou. Faço o possível para responder. Às vezes sugiro a leitura de vários livros, muitos citados em “A sedução da palavra”(Ed. Letraviva), que tem o propósito expresso de orientar iniciantes e repassar experiências literárias. O ideal é que houvesse uma “clínica de textos”, que acolhesse essa demanda profissionalmente, porque nenhum escritor tem disponibilidade para esse árduo e delicadíssimo trabalho. Seria um trabalho de consultoria, como qualquer outro, com hora marcada, tabela de preço, para dar logo mais seriedade à atividade.
Alguns pedem logo uma orelha ou prefácio, caso o livro seja do agrado. Isto também é complicado. O solicitante tem a ilusão que uma apresentação vai lhe abrir as portas. Não vai. Só vai se o livro for bom mesmo. Neste caso nem precisa de orelha ou prefácio para se impor. Claro, há autores que elogiam todo e qualquer livro, por generosidade ou por não quererem magoar as pessoas.
Quando o autor pergunta se deve continuar ou não a escrever, digo que esta é uma questão que ele, e não outros, deve responder. Dá vontade de lembrar aquele conselho de Rilke ao jovem poeta, que se escrever não for uma necessidade vital, então é mesmo melhor parar e ir cantar noutra freguesia.
Às vezes, os que pedem tal opinião estão num estágio pré-literário.Escrevem só de ouvido.Repetem lugares comuns. Não sabem nem o que é lugar comum ou como lidar com ele. Não estão a par da história
literária, dos movimentos que se sucederam, dos diferentes estilos e técnicas. Não são nem sequer leitores, bons leitores, aqueles que convivem e assimilam os grandes e pequenos autores. Pensam que escrevem, mas estão sendo escritos por uma linguagem que já existe. Desconhecem que o escritor é aquele que ocupa um lugar na linguagem. O texto está entre o prosaico de certas letras banais de música e simples(ainda que legítimas) anotações emocionais. Nesses casos não há muito ou nada que fazer. (O mesmo se dá com quem resolve pintar, fazer teatro, música ou o que seja de artístico, movido por impulsos superficiais e descomprometidos).
Mas o caso mais difícil é daqueles que têm realmente talento e já se expressam de uma maneira mais madura e pessoal. Não vamos encontrar em seus trabalhos falhas primárias. Já têm leitura. Conhecem alguns clássicos de ontem e de hoje. Não são incautos. Estão numa situação que é grave e delicada, estão na borda de alguma coisa que pode, ou não, acontecer. Ou seja, podem ou não virar socialmente artistas.
E é aqui que a porca torce o rabo.
Até diria que uma coisa é estar artista e outra é ser artista. Pode uma pessoa numa determinada circunstância ou período de sua vida, eventualmente, estar em condições tais que suas emoções se precipitem em determinadas formas de expressão. É como se tivesse se conectado com forças e energias que a ultrapassam e a resgatam.
Mas uma coisa é a capacidade de fazer algo razoavelmente bem feito num determinado instante. Outra é comprometer-se com um projeto onde vida-e-obra se confundem. É como se tivéssemos achado umas pepitas de ouro na superfície de um terreno. Mas a riqueza está no fundo e exige paciência, técnica e aprofundamento. E é aqui que muitos embatucam, porque achavam que bastava balançar a árvore dourada e os frutos cairiam aos seus pés de Midas.
Ao contrário, daqui para frente é que o desafio vai começar. Agora é que há que atravessar o deserto por quarenta anos e cultivá-lo “como um pomar às avessas”. É como se alguém tivesse as ferramentas, alguns tijolos e
pedras: resta uma construção por fazer. Cadê o projeto? E a construção é aquilo que se constrói enquanto se constrói. Sendo a obra de arte, segundo Joyce, uma obra-em-progresso, como diria o nosso Rosa, é travessia.
Por isto, as pessoas que têm alguns dos atributos necessários para se tornarem artistas, num determinado instante encontram-se naquela situação que a antropologia chama de situações limites. Há um ritual a cumprir para se passar de um estágio a outro. Ultrapassar essa linha divisória entre o amadorismo e o profissionalismo, entre o episódico e o sistemático, entre o aleatório e um projeto estético-existencial, eis o desafio. E nisto, de novo, há uma pesada solidão. Solidão dificil de ser compartilhada. Tenho dito a algumas dessas pessoas que surpreendi na soleira desse rito de iniciação: agora depende de você. De você e de uma série de fatores aleatórios. Pois assim como o criador tem que cavar no escuro de si mesmo a sua pretensa riqueza, entrar no sistema literário e artístico é entrar numa selva escura. Talentos podem se perder, ou terem seu percurso mutilado, enquanto outros são espantosamente superestimados.
O artista autêntico, no entanto, tem a coragem e a audácia de abrir e povoar uma clareira ou receber esse raio na cara, não apenas eventualmente, mas a todo instante. Mas isto é altamente perigoso. Diante dessa situação, alguns entram em pânico e se demitem. Abrir-se à arte é dar um salto mortal no escuro, para que todos vejam.